Afinal não é um pé gordo! É linfedema.

 


Nasci e ninguém reparou. Tinha uma flor, uma mancha escura na nádega esquerda, e no meio das regueifas de bebé gordinho, não existia a noção de que aquela perna viria a ser considerada diferente.

Comecei a andar tarde e foi aí que a minha mãe olhou o meu pé com outro olhar. Havia um sapato que caía (o direito), o outro permanecia. O pediatra olhou e recomendou prosseguir sem especial atenção. Quando fosse mais velha e se algum dia constituísse limitação logo poderíamos olhar com mais atenção. Outros especialistas (pediatras, cirurgiões vasculares, ortopedistas) não desconfiavam do que seria, empurravam-me de especialidade em especialidade ou davam suposições aterradoras à minha mãe. A minha mãe agarra-se à palavra do pediatra. Ajudou a descomplicar. Mais tarde, olharíamos com atenção. Ainda não era problema. Passo a passo.

E passo atrás de passo (desde esses primeiros) prossegui, com um pé mais inchado que o outro, sem diagnóstico. Era apenas um pé gordo, chamava-lhe. Quando era pequena, nunca senti limitações. Andava, corria, ginasticava, dançava. Todavia, fazia entorses com mais facilidade e chorava nas sapatarias. Comprar botas e sandálias era uma tarefa antecipada com frustração, em vez de animação. Aos 10 anos, entro no ballet e sigo uma vida intensiva de bailarina. Apaixonada pela dança, o pé nunca seria impedimento. Inchava muito no final dos ensaios de muitas horas, mergulhava em água fria e continuava no dia seguinte. Eram muitas horas de aulas e ensaios, ballet clássico, contemporâneo, jazz. Muitas horas a dançar. E a vontade era maior que a dor. Sempre foi.

Eis que na adolescência, ainda bailarina, o pé começa a incomodar mais. Vou investigar o meu pé gordo. Diziam que era gordura, tecido adiposo. Pesquiso uma série de tratamentos estéticos mais e menos invasivos, até me submeter a uma lipoaspiração, sob conselho do médico de cirurgia plástica. Hoje em dia a minha fisioterapeuta descreve a lipoaspiração numa pessoa com linfedema como aspirar a casa com uma venda nos olhos. Hoje percebo. Não sei se voltaria a fazer, tanto melhorou o aspeto, como piorou a vivência. Na altura foi a solução milagrosa que queríamos agarrar. Ainda achávamos nós que de gordura se tratava.

Eis que não se tratava de gordura, como sempre desconfiava. Aos 21 anos consulto um cirurgião vascular que me recomenda uma linfocintilografia e encontro finalmente uma resposta: era um linfedema crónico primário na perna esquerda. Sei que na altura me senti revoltada. Como é que com apenas 21 anos encontrava o meu diagnóstico? Os diagnósticos são teto e são chão. São teto porque às vezes limitam, mas são também chão, descobri. São chão porque alcatifam o sentir, normalizam a vivência, fazem sentar nas certezas de uma palavra. Como é que era possível só conhecer aquela palavra aos 21 anos se sempre me esteve tatuada na pele? Como é que era possível só ter nome agora? Uma palavra para pesquisar no Google, um termo para apontar em questões, uma forma de explicar o que tinha. O médico recomenda a utilização de meia elástica e drenagens. A raiva mobilizou-me a procurar informação. Mas meia elástica? Não queria usar. Tinha 21 anos. Como iria usar uma meia até à raiz da coxa? Eu queria revolução, não queria uma meia de velhinha na mão.

Torci o nariz, não usei. Já havia parado de dançar. O calor incomodava, as caminhadas molestavam. Mas continuei a caminhar, continuei a ir à praia. Continuei a não ter cuidados e a nada fazer.

Tornei-me expert em fingir que o problema não existia, em acomodar-me à dor, sem a reconhecer.

Hoje em dia ainda me questiono como tanto tempo não usei a meia, esta minha querida amiga, que se tiro por umas horas, logo me apetece colocar.

Um dia encontro um grupo no Facebook “Linfedema em Português”. Como era possível? No grupo havia uma pessoa jovem (como eu), com linfedema primário (como eu). Era do norte, como eu. Ainda não a conheci fisicamente, mas agradeço-lhe várias vezes. Reconheci-me nas fotografias que partilhava. Tinha um bebé, como um dia eu sonhava ter. Ia à praia, fazia a sua vida, simples e despreocupada. Mas com cuidados. Era como eu. Mas honrava o linfedema, não o atirava para uma gaveta poeirenta das questões que desejamos ignorar. Contactei-a e conheci a minha terapeuta, a Daniela, a quem devo a forma como hoje lido com esta questão. Aprendi a usar meia elástica até à raiz da coxa. Todos os dias. No outro dia até a levei para a praia. Aprendi a fazer drenagens semanais, a reservar esse espaço na agenda para mim. Aprendi a reconhecer a dor, a compreender os sinais, os antecedentes e consequentes. A sentir o linfedema e a integra-lo em mim. Hoje em dia tenho cuidados, faço yoga e ballet adultos.

Introduzi-me ao linfedema.

Olá, eu sou a Sofia! Não te vou dar muito espaço para te instalares. Mas reconheço que aí estás, presto-te atenção e dou-te o meu olhar.

Olho para ti também. Olhos nos olhos. Com cabeça e coração. Esperança e naturalidade.

Obrigada linfedema por me ensinares a reconhecer que há teto e chão em tudo o que habita em nós.

texto de
 Sofia Guichard


4 comentários:

  1. Que texto lindo ❤️ de alguém com esta força interior linda só podia sair este texto lindo. Obrigada Sofia pela partilha ❤️

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  2. Texto muito bonito. Obrigada pela partilha. ❤️

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Manuela (L de linfa)