Sim, tenho uma perna chouriço!

Demorei a escrever este testemunho porque não sabia bem qual seria o seu registo: deveria relembrar e partilhar a minha caminhada de descoberta e aceitação da minha perna chouriço? Ou deveria dar enfase a como a minha perna chouriço me transformou e mudou a minha forma de reagir perante outros desafios?

Ora uma história não vive sem a outra, então vou-vos contar primeiro, e de forma resumida, como é que a minha perna chouriço, dentro de mim, deixou de ser “um problema” e passou a ser parte de quem eu sou…

Tal como muitos, principalmente quem tem um linfedema primário há alguns anos, também eu andei durante um tempo que me pareceu infinito (na realidade foram cerca de 2 anos) à procura de respostas. Procurava alguém que soubesse e que fosse capaz de me explicar porque que é que a minha perna inchava e, a dada altura, deixou de querer desinchar, bem como cuidar da mesma sem comprometer a vida de uma adolescente “normal”.

Eu era uma miúda de 16 anos, com toda a vida e inseguranças características da idade, que após uma noite de São João acordou com a perna direita inchada sem qualquer explicação aparente… obviamente, os meus pais procuraram logo descobrir, junto da comunidade médica familiar e amiga, quem me pudesse ajudar. 

O primeiro prognóstico que me foi dado foi “em 6 meses estás curada” (nunca hei de esquecer estas palavras!). Findo os 6 meses e sem grandes melhorias, afinal teriam que ser mais alguns meses e talvez não fosse uma coisa de tão fácil resolução. Fui reencaminhada para outro médico da especialidade e assim fui seguindo: drenagem linfática pelo menos 3 vezes por semana, muito repouso com as pernas elevadas e vários outros tratamentos (da medicina convencional e alternativa)… mas melhorias… muito poucas e de pouca duração.

Graças à minha mãe, que é uma verdadeira Guerreira, e aqui tenho mesmo que lhe prestar a homenagem devida, que não se contentou com “se”, “talvez”, “vamos tentar isto”, “vamos tentar aquilo”, corremos a comunidade médica até finalmente encontrarmos o Dr. Pereira Albino, que recomendou uma clínica especializada em linfedemas e de tratamentos intensivos.

Bendito o dia que fui parar a essa clínica! Foi o verão de recuperação do corpo e da alma! Conheci pessoas maravilhosas que ainda hoje são minhas amigas (uma delas até vai ser minha dama de honor), aprendi a cuidar da minha perna e a conciliar os tratamentos diários com o dia-a-dia agitado de qualquer jovem adulta (nessa altura já tinha 18 anos), e finalmente vi MELHORIAS SIGNIFICATIVAS na minha perna. De repente, de “pessoa com um problema estranho”, passei a uma “pessoa NORMAL”. Entrei com uma perna dura com cerca de 3 litros de linfa a mais (em relação à perna esquerda), que ficava roxa só de a pousar no chão durante 1 minuto sem meias de compressão e ficava com um molde perfeito das minhas mãos quando adormecia com as mãos entre as duas coxas, para sair com uma perna 1,5 litros mais leve, molezinha e, mais importante que isso, SAÍ UMA MULHER CONFIANTE! Sabia o que tinha, sabia como cuidar, já podia VIVER COM NORMALIDADE! Foi interessante ver as pessoas que me conheciam e muitas mal sabiam da minha perna chouriço, que notaram “qualquer coisa” de diferente em mim, um brilho, um estado de espírito diferente depois desse verão!

Sei hoje, depois de ler e conhecer outros casos, que neste processo passei por uma depressão profunda, mas que foi escondida de tudo e de todos e da qual só consegui recuperar devido à minha passagem pela clínica. Sei também que a depressão não se deveu exclusivamente à perna, pois passei por outras situações complicadas na mesma altura que contribuíram para que tivesse entrado lentamente neste estado de depressão, mas o facto de não saber como tratar da minha perna foi um factor determinante.

Voltando ao meu percurso, com os devidos altos e baixos da vida, fui seguindo a minha vida com normalidade… perguntam-me vocês: “Normal? Não tiveste e tens que ter vários cuidados? Supostamente, não podes fazer uma série de coisas!”

Bom, em relação aos cuidados, é verdade, tenho que ter alguns, mas conhecem alguém neste mundo que aos 20, ou agora aos 30, não tenha que ter algum tipo de cuidado seja porque motivo for? 😉

Encaro a drenagem linfática como alguém que faz natação duas vezes por semana para melhorar a postura das costas. Isso não é normal? Fazer as ligaduras, é a mesma coisa que lavar os dentes ou pôr creme nas pernas (sempre tive que pôr porque sempre tive uma pele muito seca), não é normal? O não poder apanhar muito sol directo, principalmente na perna, é comparável às pessoas que têm que se proteger mais do sol porque apanham facilmente escaldões ou têm alergia, não é normal? Para mim, o saber como tratar e como cuidar, foi determinante pois incorporei todos os cuidados e necessidades no meu dia-a-dia com normalidade, e quanto mais “normal”, ou usando o termo certo, quando mais naturalmente eu agir, mais as pessoas veem a minha perna com naturalidade.

Em relação ao que eu “NÃO POSSO FAZER”? Bom, o que é que eu não posso mesmo fazer? A minha perna NUNCA foi um obstáculo, nunca me impediu de alcançar ou concretizar qualquer sonho ou objetivo de vida. Em adolescente e ainda sem saber muito bem como tratar da perna, fui de férias “só com amigos” (o grito da emancipação dos jovens em relação aos pais 😉), em jovem adulta fui de ERASMUS para a Finlândia durante um ano, em adulta jovem trabalhei durante um ano e meio em África… Sempre viajei e participei em todas as atividades que quis e que me faziam feliz! Agora, claro, sempre com o compromisso de não descuidar da perna, mas como esses cuidados já me são naturais, não é nada que me prenda! 😊

Aliás, hoje eu olho para a minha perna quase como se fosse o meu grilo falante! Há alturas em que eu não lhe consigo dar tanta atenção e a perna parece que percebe que não é por eu “não querer saber”, então porta-se como uma “Perna” de “P” grande, mantém-se “firme e hirta”, dando-me liberdade para me dedicar ao novo projeto ou ao desafio que tenho em mãos. Mas quando eu ando mais distraída, também é ela que me vai dizendo “olha que estás a abusar… tens que parar um bocadinho e cuidar mais de ti!”. E assim vamos vivendo num eterno compromisso entre a ambição e desejo de fazer tudo e o cuidar de mim e da minha perna!

Hoje eu olho para toda a minha travessia e, sabendo o que sei hoje, vivendo o que vivi, se me dessem a escolher entre abdicar de todas as experiências e amizades que fiz por causa da perna, para não ter o linfedema, confesso que não sei qual seria a minha resposta! Não vou ser hipócrita e dizer que “gosto” de ter linfedema, mas, HOJE, não posso dizer que “é um problema” na minha vida! Hoje sou quem sou, hoje tenho uma postura na vida que de certo não seria a mesma se não tivesse passado o que passei com o linfedema… 

Já há cerca de 4 anos fui diagnosticada com mais uma doença crónica, mas esta degenerativa. Passei novamente pelo processo todo: negação, raiva, negociação, depressão e finalmente aceitação.

Mas desta vez foi diferente, face a um problema (este sim, ainda é um problema na minha vida), acredito que cheguei mais depressa à fase da aceitação (sempre com alguns altos e baixos, perfeitamente naturais).  Soube procurar ajuda quando senti que não estava capaz de ultrapassar sozinha, soube perfeitamente distinguir os diferentes momentos, soube o que “precisava” de fazer ou sentir para os viver e mais rapidamente os ultrapassar.

Ou seja, face ao desconhecido e à insegurança, aprendi, não só, mas muito por causa da perna, a manter o controlo de mim mesma e a manter-me funcional.

Assim termino, nem todos os dias são bons e optimistas, mas SOU MAIS FORTE!

Sara França
21/04/2020